terça-feira, 23 de setembro de 2008

REPORTAGEM: As Vozes da Magia



São vozes que dão vida a célebres desenhos animados que tantas vezes transportam crianças e adultos para um mundo de fantasia e de ilusão. O que a maioria de nós esquece facilmente é que, por detrás dessa fantasia, existe um trabalho infindável de pessoas que dão o seu melhor para que, dia após dia, a magia e o encanto se mantenham.



Alguns preferem viver no anonimato e ser pessoas comuns. Outros preferem ser reconhecidos pelo que fazem e ter algum protagonismo devido ao investimento que os Estúdios fazem no seu trabalho. Seja como for, a verdade é que os artistas de dobragem são muitas vezes esquecidos e que a maioria de nós nem pára para pensar “de quem será aquela voz?”.
“O Rei Leão” foi o primeiro filme da Walt Disney dobrado em português e teve, em 1994, um sucesso estrondoso. Desde os mais novos aos mais velhos, vários foram aqueles que se deixaram fascinar pelo pequeno Simba e pela ternura e humor que envolvia a história. No interior da Santa- Claus, uma empresa de audiovisuais em Cascais, descobre-se uma das principais vozes desse mítico filme. Actualmente com 27 anos, Tiago Caetano, sócio da Mastershot, uma empresa de produção audiovisual, deu voz ao pequeno Simba com apenas 15 anos de idade. Tiago explica então como tudo começou: “ Quando veio a Rua Sésamo para cá, aquele episódio piloto, precisavam de uns miúdos que soubessem jogar à bola e, como a minha escola era mesmo ao lado dos estúdios da RTP, foram lá arranjar uns miúdos para fazer uns testes…fomos uns quantos e só fiquei eu!”

“Acho que tive sorte: estava no local certo à hora certa!”
Tiago Caetano


Começou então como figurante na Rua Sésamo e, entretanto, depois de o realizador, António Feio, falar com os seus pais, iniciou-se nas dobragens, aos nove anos de idade. Após cerca de quatro anos de Rua Sésamo, Tiago concorreu ao casting para fazer a voz do pequeno Simba e, mais uma vez, teve a sorte de ser escolhido.

No que diz respeito à cena mais triste da história, Tiago nem hesita em responder: “Foi aquela parte em que o pai do Simba morre, enfim, aquela parte em que toda a gente chora…eu não chorei, mas que foi a mais triste, foi…”. De resto, quase todas as cenas foram engraçadas, mas Tiago recorda uma em particular: “Quando o Simba está a fugir das hienas no cemitério dos elefantes e desce pela coluna de um mamute, eu tinha de soluçar e então, como eu era pequenino, o truque foi virarem-me ao contrário e baterem-me nas costas! Ao fim de algumas tentativas, saiu na perfeição!”.
Para Tiago, uma criança na altura, o mediatismo do filme teve o seu quê de chocante e foi um enorme motivo de orgulho: “Havia actores já conhecidos, figuras públicas e eu lá, meio pequenininho, no meio deles, a dar entrevistas às revistas e tal…a ante-estreia no Tivoli foi uma coisa em grande!”. Durante algum tempo, as idas ao cinema com os amigos foram uma constante. “Ia quase todas as semanas e levava muitos amigos para ouvirem como tinha ficado a minha voz”, confessa Tiago, esboçando um sorriso e um olhar saudoso.

“Foi giro poder ir ao cinema com o pessoal todo e ouvir a minha voz pela primeira vez!”
Tiago Caetano

Para este jovem, as dobragens deram-lhe, desde muito cedo, e apesar de os cachets não serem nada “por aí além”, uma independência que lhe permitia comprar aquilo de que mais gostava, que na altura se resumia basicamente a “pranchas de surf e uns pares de ténis”. De qualquer modo, Tiago mostra-se satisfeito ao dizer que, assim, os seus pais escusavam de suportar esses gastos.
Mas essa satisfação desaparece, quando se fala de um dos sonhos deste jovem empresário. Aí, a expressão muda e o olhar já não é de saudade mas sim de uma certa revolta. “Tenho pena de não continuar a fazer filmes para cinema, mas Portugal é um país de interesses e os filmes vão todos para o mesmo estúdio, para aquela família, e não saem dali”, revela Tiago.
Hoje em dia, o que vende os filmes são os nomes conhecidos e os mais recentes são feitos, segundo Tiago, por “aqueles actorzinhos da moda, que fazem com que se vá ao cinema para se ouvir determinada voz e não para ver o filme”. Actualmente, poucas são as oportunidades para fazer castings, algo que entristece Tiago: “O pior é que eu e os meus colegas, que fazem dobragens há tanto tempo quanto eu, nem sequer temos a oportunidade de concorrer…Eu até poderia não ficar, mas, pelo menos, tentava e dava-se assim também uma oportunidade de escolha às entidades que têm de escolher e não aos estúdios que só escolhem a sua família, os seus compadres e os seus amigos!”.



“Como sou um bocado orgulhoso, sou incapaz de pedir por favor para me deixarem fazer um casting…Não faço!”
Tiago Caetano

A sorte de Tiago, actualmente a gravar a série de desenhos animados “Boing Boing” (RTP2), é conseguir ter ainda, mesmo já sendo adulto, um registo de criança. Tiago quase aposta: “ Hoje, se tentasse fazer a voz do Simba, é claro que não ia ficar igual porque eu na altura ainda nem tinha mudado a voz mas acho que se treinasse um bocadinho ia ficar muito parecido mesmo!”. Hoje em dia, raros são os estúdios que contratam crianças para fazerem dobragens. Tempo é dinheiro e, com adultos a fazerem vozes de crianças, é tudo muito mais rápido. Para Tiago, isso tem uma grande desvantagem: “Perde-se aquela ingenuidade da voz da criança, que é quase impossível nós termos…”. Para além disso, não é feita nenhum tipo de preparação em termos de personagens. “A única coisa que fazemos antes de gravar, é ler os textos para aí uma hora antes e ver o filme original, com as vozes originais. Não há uma preparação das personagens como se faz em teatro ou cinema. A personagem construímos nós, à medida que a história vai avançando, é que vamos vendo como a voz soa melhor,” revela o jovem.
Para Tiago, o actor de dobragens deve permanecer no anonimato e sentar-se na sala de cinema com a família ou com os amigos a ver o seu trabalho, ou melhor, a ouvir.
Já José Luís Alves, 47 anos, engenheiro electrónico e responsável pela produção de diversos documentários e desenhos animados para a televisão portuguesa, entre eles “O Rei Leão”, opina de uma forma diferente: “Se participam no filme figuras importantes, é claro que tem de haver uma maior publicidade, para que haja mais público no cinema, nem que seja por mera curiosidade, para ver como é que a Catarina Furtado ou o Diogo Infante, por exemplo, ficam a fazer dobragens!”.
Ligado às dobragens desde os tempos em que trabalhou na conhecida empresa brasileira Herbert Richards, há quase 29 anos atrás, é com saudade que recorda as gravações de “O Rei Leão”: “Houve um espírito de camaradagem enorme, desde a parte artística à parte técnica… estavam todos muito eufóricos!”. Na ante-estreia no Tivoli, José Luís confessa que as lágrimas lhe vieram aos olhos, depois de um projecto tão trabalhoso mas, simultaneamente, tão empolgante.

“Foi assim tipo…um sonho realizado…foi um sentimento único na altura!”
José Luís Alves


Telmo Miranda também participou neste grande sucesso da Walt Disney. Actualmente com 33 anos, sendo cantor no programa Fátima (SIC), actor de dobragens (grava a série Abre-te Sésamo e locuções para TV Cabo, nomeadamente para os canais Discovery e História) e director da World Cruisers Agency, Telmo revela que foi com “O Rei Leão” que começou nestas andanças, mas que ainda não era bem um actor de dobragens: “Estive ligado durante algum tempo mais à parte musical do que à parte de diálogos e também dirigi os cantores para as dobragens, inicialmente na Disney e depois noutras companhias”. Tendo em conta que foi no início da sua carreira, “O Rei Leão” traz-lhe boas recordações: “Eu não gostava muito de me ouvir, mas foi muito engraçado porque, na ante-estreia, fizeram uma montagem de como se faz o processo de selecção para escolher as vozes e mostraram, de personagem para personagem, todas as vozes da Europa que fazem essa mesma personagem, ou seja…é quase como nos estarmos a ouvir noutras línguas, porque os timbres são parecidíssimos!”.

“Ainda hoje, tenho algumas dificuldades em ouvir-me…”
Telmo Miranda

Noção de ritmo, boa dicção e domínio do vocabulário são três requisitos fundamentais para um actor de dobragens, sensível o suficiente para perceber o que as personagens querem transmitir e para interpretar a frase o melhor possível, alterando a voz conforme lhe pareça mais adequado.
Famoso ou desconhecido, sentado na escuridão do cinema ou nas luzes da ribalta, o actor de dobragens tem, ainda hoje, uma missão crucial: criar um mundo de fantasia e manter o brilho no olhar das crianças.

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